Por um choque de espanto e inveja nas escolas

Reproduzo abaixo uma carta enviada recentemente por Norman Gall, diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel. Norman, que está na China desde o começo de dezembro, trabalha num projeto investigativo sobre as relações Brasil-China e os possíveis impactos da crescente escassez hídrica chinesa.

Mas nesta carta Norman fala principalmente sobre o que o Brasil poderia aprender com o sistema de educação pública chinês e com o modelo de escolas charter KIPP dos Estados Unidos que ele conheceu de perto entre 2007 e 2009.

“Caros Amigos:

Catalina e eu temos visitado escolas no interior da China. Na escola primária Dong Guan, na cidade de Sanyuan da província Shaanxi, havia 70 garotos espremidos numa classe do segundo ano. Todos eles estavam tão focados em suas tarefas, que quando eu entrei na sala com uma câmera, nenhuma criança levantou os olhos de seu trabalho e tampouco notou minha presença. Nas escolas da periferia de São Paulo ou de Nova York, as crianças estariam clamando por atenção. Na escola primária de Dong Guan, o ambiente focado na sala de aula com todos os garotos engajados em suas tarefas me lembrou o que vi em 2007 e em 2009 na escola KIPP de ensino fundamental no South Bronx, de Nova York. Isso explica por que temos recomendado a criação de escolas segundo o modelo KIPP na periferia de São Paulo a serem apoiadas pelo setor privado. O sucesso de tais métodos geraria um choque de espanto e inveja em círculos concêntricos nas escolas públicas das redondezas.

As crianças chinesas aprendem a se concentrar desde muito pequenas. No primeiro ano, uma criança deve aprender a escrever entre 200 e 300 palavras/caracteres e a ler 500 deles. Quase todos os alunos são aprovados depois de submetidos a várias provas durante o ano letivo. A escola deve aceitar crianças da zona rural de pais que trabalhem na cidade. Pudemos observar que muito disso é aprendizagem de memorização, mas os garotos estão concentrados, aprendendo alguns fatos e práticas que possam lhes ser úteis mais tarde na vida, em contraste com o que vemos em várias escolas de São Paulo. A escola Don Guan tem 2 500 alunos e 150 professores. Seu diretor, Xin Zheng, de 40 anos, lecionou por 20 anos antes de ser eleito pelo professorado para o atual cargo. Ele afirma que muito esforço tem sido dedicado ao desenvolvimento de bons hábitos de estudo, como as lições de casa regulares. O dia escolar vai das 8h10 às 16h40, com duas horas para almoço e aulas com 40 minutos de duração pela manhã e 30 minutos à tarde. Os professores são designados para trabalhar na escola pelo governo da província de Shaanxi e são continuamente avaliados por análises entre pares em aulas de demonstração, exames e treinamento nas próprias escolas. Os reprovados têm a chance de se aprimorar, mas podem vir a ser demitidos pelo governo municipal. Em toda a China, exames competitivos são a principal chave para oportunidades em todos os níveis escolares e burocráticos. A escola Don Guan tem seu próprio hino, bandeira e um caractere próprio para grafar seu nome.

O poder da responsabilidade coletiva foi assim descrito por Peter Hessler em seu excelente livro, River Town: Two Years on the Yangtze (2008), baseado em seu ensino de literatura inglesa numa pequena faculdade de pedagogia na província de Sichuan:

Eu lecionava no quinto andar do prédio principal. Havia 45 estudantes numa classe, todos espremidos atrás de velhas carteiras de madeira. A sala era de responsabilidade deles. Eles limpavam os quadros negros nos intervalos das aulas e duas vezes por semana limpavam o chão e as janelas. Se a faxina não fosse adequada, a classe era multada… Pouquíssimos tinham dinheiro sobrando para gastar dessa forma e, portanto, duas vezes por semana as classes eram limpas de forma diligente e completa.

A China provê nove anos iniciais de educação gratuita a todos, sendo que o que chamamos de ensino médio no Brasil é pago pelos pais. A escola fundamental Longqiao é a maior entre as 17 da cidade, com 280 professores e 2 700 alunos, 20% dos quais são de áreas rurais. Guang Wen, seu diretor, diz que o governo não tem como pagar o ensino médio para todo mundo e que está concentrando os recursos em aumentar a educação pré-escolar. Algumas cidades têm dinheiro bastante para bancar também o ginásio, mas este não é o caso de Sanyuan. Entretanto, 80% dos formandos das escolas fundamentais de segundo ciclo vão para o ensino médio e 80% destes cursam algum tipo de estudo avançado, frequentemente em cidades maiores.

No outro extremo estão as escolas rurais chinesas, metade das quais foram fechadas ao longo da última década, como resultado da política de filho único e das tendências de migração e de fertilidade. Na aldeia de Nanjin, próxima ao Rio Amarelo, visitamos uma escola com 14 professores e apenas 30 alunos. “Costumávamos ter de 300 a 400 alunos, mas agora as famílias têm dinheiro bastante para enviar as crianças à escola, que fica a 9 quilômetros”, disse o diretor. “Testamos nossos alunos todo mês para ver o quanto eles aprendem, mas não podemos diversificar o currículo porque não temos alunos suficientes e somos financiados em termos per capita.” Apesar de terem tantos professores, poucos se ausentam. Eles são proibidos de ter outros empregos.

Nos diálogos sobre a reforma escolar no Brasil, temos argumentado que a liderança deve vir do topo do governo. Na China, o líder era Deng Xiaoping, mais conhecido pela abertura da economia chinesa para o mundo nas décadas de 1970 e 1980. Ao retornar ao poder em 1977 de seu terceiro exílio interno ordenado por Mao Tsé Tung, Deng reagiu contra o atraso nas escolas públicas chinesas e em ciência, destruídas pela Revolução Cultural dos anos 1960. Ele disse aos funcionários do Ministério da Educação: “apesar de ter reconhecido o grande fardo que seria estar a cargo do trabalho científico e educacional, eu me voluntariei para o posto. As quatro modernizações da China não irão dar em nada… se não obtivermos sucesso nesse trabalho.” Deng acrescentou que o ministério iria precisar de 20 a 40 pessoas “com idade próxima aos 40 anos cujo dever seria fazer a ronda nas escolas… Como comandantes indo até suas companhias, eles deveriam se sentar nas classes como alunos, se familiarizar com a situação real, supervisionar a aplicação de planos e políticas, e então reportar aos superiores… não podemos nos satisfazer com conversa mole.” Deng ressuscitou o sistema chinês de exames competitivos, um pilar de sua antiga civilização, para substituir o sistema corrupto de recomendações para admissão às universidades e postos burocráticos baseados em antecedentes de classe e ortodoxia política. Argumentando que os antecedentes de classe haviam deixado de ser importantes, uma vez que as classes da burguesia e dos senhores da terra tinham deixado de existir, Deng viu que o quanto antes os exames competitivos fossem introduzidos em cada nível da escola elementar até a educação superior, a liderança chinesa poderia começar a aprimorar a educação o mais rapidamente. As escolas primárias e secundárias começaram a preparar seus estudantes para serem testados à medida que eles galgavam a escada educacional e as universidades começaram a preparar alguns de seus melhores alunos para cursar a educação superior no Ocidente.

Na estação de bombeamento de Jiangdu, perto do antigo Grande Canal, onde começa o gigantesco Projeto de Transposição de Água Sul-Norte para enviar água a Pequim, o engenheiro chefe, Yong Chenglin, nos contou que havia enviado o filho para estudar desenho industrial na Universidade de Nova York. Yong disse que outros nove profissionais da estação haviam usado suas poupanças para enviar os filhos para universidades dos Estados Unidos. Isso parece ser uma tendência entre a ascendente classe média chinesa.

Tudo isso, aliás, não passa de uma digressão em minha pesquisa principal durante seis semanas na China: estudar o escopo e as implicações do problema da água na China, que virá a impactar as relações da China com o Brasil e também com a economia mundial. Contudo, creio que seja útil dividir o que tenho aprendido sobre as escolas da China com amigos que compartilham minhas preocupações sobre a educação no Brasil.”



http://exame.abril.com.br/. Acesso em : 09.01.2012 - 06h05